António Martinó's profile

NATASHA SEMMYNOVA (2014)


O transformismo, é uma arte teatral, em que um indivíduo se veste com roupas e acessórios do sexo oposto com o propósito de criar uma ilusão e representar um papel com o objetivo de entreter um publico em questão. Pode ser confundido com outros conceitos, como Drag-Queen, e muito frequentemente com Travestis, e embora tenham alguma coisa em comum, não servem os mesmos propósitos. O transformismo como todas as artes teve uma evolução: inicialmente apenas comum para práticas de concursos de beleza, representação teatral, evoluiu mais tarde para uma forma de espetáculo mais produzido e glamouroso. Acabou também por incluir outras atividades, como o mais frequente playback e imitação de artistas musicais conhecidos, mas existe também quem cante ao vivo, e crie representações de raiz.
Esta ideia surgiu depois de eu fazer uma pesquisa sobre a Nan Goldin, para Fotografia Contemporânea, no 1º semestre, e como gostei bastante do tipo de abordagem, pensei em explorar esta parte da sociedade tão poucas vezes representada. Por ser um tema ainda pouco explorado, e admito, que me traz bastante curiosidade, optei por arriscar e rumar a este campo da arte ainda pouco conhecido e infelizmente com criticas mais negativas do que positivas. A possibilidade de realizar este projeto muito mais arrojado, surgiu de uma forma um tanto inesperada, pois eu estava a preparar outro projeto com um tema completamente diferente, que acabou por ficar suspenso até hoje.
Inicialmente, tinha em mente fotografar uma transformista do Porto, de uma forma encenada, por se tratar de uma personagem que existe, mas através de uma identidade criada pelo Vítor. O plano era seguir com fotografias produzidas maioritariamente em estúdio, quase como se se trata-se de um editorial de moda, mas com um modelo muito pouco usual. Comecei com esse plano, mas entretanto as ideias foram-se elaborando pelo caminho, e com ajuda de referências fotográficas de projetos com o mesmo tema, como o caso do "Transmongolian" de Alvaro Laiz, inicialmente, acabei por me aperceber que este projeto tinha uma aura mais artística e mais emocional do que pegar apenas no modelo, como um objeto a ser vendido e colocá-lo num fundo sem graça, de um estúdio com luz planeada, com todas as condições para tudo correr a 200%. O entusiasmo desvaneceu-se com uma rapidez enorme. E apesar de ter apreciado imenso o tempo que passei com o modelo no estúdio, e de ter captado boas fotos e aprendido bastante sobre técnicas em estúdio, senti-me capaz de mais. De arriscar. O tema permitia isso. A primeira coisa que me surgiu foi o espólio mais que diversificado da Nan Goldin sobre este tema, e todas aquelas fotos que à primeira vista seriam consideradas sem interesse, erradas em termos técnicos, são emotivas e encaixam-se perfeitamente no espaço em que
foram tiradas. Sem saber, e depois de muito batalhar para entender que o caminho não poderia ser o mais fácil, mas sim o mais atribulado, acabei por delinear um novo projeto dentro deste novo projeto. As tutorias foram uma parte desse despertar, mas mais ainda, foi a intensa pesquisa que fiz sobre este tema, e as reuniões e a troca de ideias entre eu e o modelo. Encontrei poucas referências de projetos semelhantes, mas o que encontrei era bastante forte para me incentivar a seguir em frente com uma vontade cada vez mais crescente.
Antes de passar às apresentações, dizer que um dos objetivos iniciais era pegar nessa face escondida da sociedade e retratá-la, sem tabus. O conceito não estava completamente definido, mas em princípio seria basear-me na letra de uma música, e ainda estava indeciso se iria incluir fotografias da transformação homem-mulher, ou se me iria focar apenas na personagem já completa.
«Natasha Semmynova é uma transformista, também considerada Drag-Queen, desde Agosto de 1999, e destaca-se pela forma singular com que pisa um palco. Desde o momento em que os saltos tocam na área em que se apresenta, o mundo gira à volta dela. Evidenciando detalhes fora do comum tais como a maquilhagem, o guarda-roupa, e a dança, cria um espetáculo irreverente.»
A primeira vez que tive contacto com a Natasha, pessoalmente, foi no estúdio de fotografia da faculdade, aquando da sessão fotográfica de testes. Eu já tinha em mente o outro plano de um projeto mais documental, mas mesmo assim, como tinha o estúdio reservado e toda uma linha de ideias preparadas, optei por fazer essas fotografias na mesma, até porque seriam uma mais valia para mim.
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«Assistir à transformação do Vitor, uma pessoa que conheço há já algum tempo, numa personagem com feições iguais, com o mesmo corpo, mas ao mesmo tempo, com uma face completamente diferente, foi uma experiência diferente. Diferente de quando assistimos a modelos a ser caracterizados com o propósito de servir de objeto a sessões fotográficas para vender produtos ou ideias, diferente porque aquela não é apenas uma criação do momento, é uma criação que já tem vida desde 1999, era eu ainda uma criança. Nunca tinha assistido pessoalmente ao (re)nascer da Natasha, e todas as referências que tinha eram baseadas em fotografias e vídeos que vira já há alguns anos atrás antes sequer de o conhecer, e de trabalhos que o Vítor me mostrara já depois de trocarmos impressões. A sombra que ele está a colocar sobre a pálpebra dos olhos fechados é o limiar entre o Vítor e a Natasha. Já começa a perceber-se que uma outra personalidade está a entrar no estúdio. Aquela sombra, que não é de uma sombra perseguidora do Vítor, é o ponto que estabelece quem é quem; é uma luz, porque se está a dar lugar para o nascimento de um performer.
«A Natasha? A Natasha é a maior!» - respondeu-me ela quando lhe perguntei que tipo de performista ela se considerava a si mesma. «Não sou bem uma drag-queen, não sou um transformista, porque me considero mais fora do comum do que o tradicional.»
A verdade é que Natasha Semmynova, apesar de ser uma personagem com feições femininas, foge muito do conceito mais comum de todos tipos de grupos: travestis, transformistas, drag-queens. Apesar do batom vermelho que está a colocar nos lábios neste momento, a Natasha não usa peruca. Todas as roupas ousadas e todos aqueles corpetes com traços femininos que ela tem para vestir, e as botas e botins de plataforma e salto alto, ela não esconde o seu corpo masculino, nem usa próteses para dar lugar a seios falsos.
«Estou quase perfeita, estou quase bonita...» E neste momento, ao olhar para o espelho, já não reconheço o Vítor. A Natasha acaba de se materializar no espaço. Está quase pronta. Só faltam uns retoques para a câmara começar a fechar o diafragma e capturar a sua imagem.
O meu nervosismo atingiu um pico: chegou a hora das apresentações.»
(27 de Março de 2014)
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Já numa fase posterior, no inicio do novo conceito documental do projeto, acompanhei o Vítor e a Natasha. Fiz testes para perceber até onde é que poderia explorar a personagem, e para perceber os limites de todo o ambiente noturno em que este tema se inseria com uma câmara fotográfica; porque existe uma diferença enorme entre sair e tirar fotografias de noite, e sair para tirar fotografias artísticas. Foi-me disponibilizada uma máquina fotográfica com características técnicas melhores para realizar o projeto, e para incluir vídeo, mas infelizmente de todas as vezes que precisava do material, estava sempre indisponível, incluindo uma vez em que estava requisitado no meu nome e tive que usar o meu próprio material, que, por sorte, estava comigo, por precaução.
Um desses testes mais importantes foi realizado no Pride Bar, um bar LGBT sediado perto do Marquês, no Porto. Comecei por fotografar a transformação do Vítor em Natasha em sua casa, pois não me possibilitaram fotografar nos bastidores. Já no espaço noturno, esperei pelo momento em que a Natasha entrava em ação. A luz estava completamente contra mim. Todas os movimentos de luz em conjunto com o movimento do corpo da Natasha a dançar começaram a testar a rapidez do meu pensamento e os limites técnicos da minha câmara. A maioria das fotografias saiu arrastada, sem qualidade, e eu comecei a ficar assustado. Comecei a pensar que não ia ser capaz de atingir a meta a que me tinha proposto e isso deixou-me em baixo. Nessa noite em que passei no Pride Bar, senti-me completamente envolto num ambiente completamente diferente do que estava habituado. Já lá tinha estado muitas vezes, mas nunca numa forma profissional. O impacto foi grande. A responsabilidade que me caiu nos ombros foi implacável e eu sentia-me completamente nervoso por estar numa posição que nunca estivera anteriormente. Naquela noite, senti-me crescer. Senti que ganhei conhecimento e sobretudo fortaleci partes que estavam mais débeis do projeto. Tinha que continuar em frente, e garantir que faria tudo o que me fosse possível para atingir o máximo dos meus objetivos.
Estudei as fotografias, e percebi que se queria fotografar em ambientes escuros, com movimentos rápidos e luzes em constante movimento, teria que optar por fotografar com flash ou com ISO elevado, de forma a evitar velocidades muito lentas. A primeira opção estava completamente fora de questão, visto que o objetivo era manter o ambiente inalterado; com o uso do flash era inevitável a perda da magia causada pelas luzes e pelos movimentos que, se surgissem ligeiramente arrastados, assumiria isso como uma caraterística do projeto, que até se poderia tornar interessante. Tive, então, que me mentalizar que teria consequentemente bastante ruido nas fotografias e que teria que as tratar e assumir todas as imperfeições desde que estas estivessem aceitáveis e em sintonia com o tema do projeto. Continuei em contacto com o Vítor para estar a par de todas as performances da Natasha, para que numa próxima estar já preparado para entrar em ação.
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Era de manhã, e eu tinha folga da faculdade. estava a dormir, quando acordo com o telemóvel a tocar. Era o Vítor. Eu ainda meio a dormir, atendi e pouco percebi do inicio da conversa.
«Vou atuar novamente, mas desta vez vai ser no Lusitano. Desta vez vais poder fotografar nos bastidores.» disse ele.
Foi instantâneo. Despertei completamente. Comecei novamente a planear todo o projeto na minha cabeça, pesquisei ainda mais a fundo e encontrei mais algumas referências interessantes, criei uma linha de fotografias base que queria tirar: pormenores, planos afastados, coisas banais, etc. Estava
combinado fazer mais duas sessões no mínimo. Uma em casa do Vítor, com um acompanhar das suas atividades aquando da preparação de um espetáculo como aquele. Acompanhei a preparação dele e acabou por coincidir com o dia em que ele ia cortar o cabelo, e eu penso que das fotografias mais fortes que consegui foi uma dessas em que se vê uma cara de um homem barbudo a rapar o cabelo. Tem uma presença enorme neste tema. Aliás, presenciar aquilo foi bastante excitante, porque eu sabia que iria ter impacto. O dia foi longo; acabei por vê-lo fazer o jantar, preparar as músicas e escolher as roupas. E com todo aquele entusiamo, propus a gravação de uma breve entrevista que durou uns bons 30 minutos.
O projeto parecia estar a começar a ganhar corpo, e eu não podia estar mais satisfeito com isso. No entanto, ainda havia um longo caminho a percorrer.
O dia da atuação no Café Lusitano, na Baixa do Porto, estava marcado, e o meu nervosismo crescia de dia para dia, curiosamente, porque, pensava eu, iria começar a habituar-me a esse ritmo. Não podia estar mais enganado.
Encontrei-me com o Vítor em casa dele, e fomos juntos para o Café Lusitano. A subir a rua do Túnel de Ceuta, olhava para os paralelos do passeio como se cada um daqueles paralelos da rua em subida fosse uma fonte de energia e concentração. Tudo tinha que correr bem, porque poderia não ter uma oportunidade de ouro como aquela novamente.
Pedi ajuda a uma amiga e colega de turma, a Mariana Vasconcelos, que me apoiou na gravação de todos os passos do Vítor e da Natasha naquela noite, incluindo a gravação das performances. Foi uma ajuda preciosa, e um suporte emocional, que acabou por fortalecer a nossa amizade.
O espaço era lindíssimo, um ambiente retro e moderno, ao mesmo tempo. As mesas, as paredes de madeira, os candeeiros de abajur, o chão de madeira - pouco comum em ambientes noturnos - assentavam como uma luva naquilo que eu já conhecia da Natasha Semmynova. Aliás, eu sou cliente do espaço há imenso tempo e nunca olhara para o espaço da mesma forma como naquela noite. Os bastidores também eram lindíssimos, uma mistura de sala de espera com uma arrecadação, que transmitiam a sensação de improviso, preparado especialmente para aquela noite em questão. A noite era mesmo especial, pois para alem da atuação da Natasha, havia ainda a performance de um grupo chamado "As Três Marias" que acabaram por nos dar musica nos bastidores, onde também elas se estavam a preparar e a ensaiar. A luz do backstage era pouca, mas o suficiente para conseguir boas fotografias. Consegui o que penso ser a fotografia do projeto. A que transmite tudo o que eu queria transmitir com este acompanhamento da Natasha. Um retrato, com sombras diagonais que surgem por trás da sua cabeça, o olhar a enfrentar a câmara, as tatuagens visíveis com o vestido por cima, incluindo a tatuagem com as iniciais N.S. que nada mais é que o logotipo da Natasha Semmynova. Eu estava mais preocupado com a performance, e apesar de ter tirado algumas fotografias no ensaio, não sabia até que ponto é que um espaço bastante pequeno e adivinhava-se pela noite especial, bastante lotado, me iria permitir tirar boas fotografias. Assisti novamente ao nascimento da Natasha naquela noite, e como sempre, foi especial. Naquela noite, Natasha estava de barba, e isso era um complemento. A primeira performance de Natasha era baseada na performance de Conchita Würst, a vencedora do Eurovisão da Canção deste ano, com a música "Rise Like a Phoenix".
O nervosismo que sentia por causa das performances dissipou-se quando comecei a ouvir a musica e a Natasha a cantar. Senti-me bastante à vontade para circular no espaço. As pessoas não pareciam estar incomodadas com a presença da câmara, e estavam deliciadas como eu com a performance. Desta vez, as luzes e tudo o que me rodeava parecia estar em sintonia comigo. Obvio que a preparação
ajudou imenso, e com isso aprendi um aspeto muito importante para a realização de projetos, ambiciosos ou não.
Seguiu-se mais uma troca de roupa e outra performance, desta vez baseada na música recente de Lady Gaga, uma das grandes inspirações da Natasha, G.U.Y. (Girl Under You). Obviamente que esta performance foi feita com barba, porque não havia tempo para barbear e fazer uma nova maquilhagem. Fotografei também essa mudança e essa performance, e consegui outra das fotografias mais fortes deste projeto. Uma luz azul incidente sobre a Natasha, que está com a perna levantada exibindo as meias e o corpete branco.
Acabamos (e eu a Mariana) por filmar um pequeno discurso da Natasha, que alertou para os preconceitos da nossa sociedade no que diz respeito a estes temas de diferença que eu acho que fez todo o sentido, e inclui no documentário de 10 minutos que montei e editei, em conjunto com a entrevista que fiz com o Vítor.
Neste momento, sinto que este projeto conseguiu atingir e ultrapassar as metas que estabeleci para mim mesmo. Mais ainda, este projeto, depois de apresentado na faculdade, irá ter uma continuação. Natasha Semmynova celebra este ano, em Agosto, os seus 15 anos de carreira e este projeto é apenas o inicio de um caminho que se vai estender pelo menos até esse mês, e espero eu, um pouco pelo futuro.
Agradeço muito aos gerentes dos espaços que cederam direitos para que o projeto ganhasse mais corpo e mais magia. Agradeço aos professores pelas opiniões e críticas, que muitas das vezes não me agradaram, mas no fundo tinham um pouco de razão. Agradeço-te a ti, Mariana, por toda a tua disponibilidade e palavras sábias nos momentos em que não me sentia tão capaz, e recordo sempre com gargalhadas o espelho do estúdio da faculdade que ficou desfeito em pedacinhos, mas que é agora uma memória divertida. Agradeço à Natasha. Conhecer a Natasha trouxe-me bastantes coisas positivas, trouxe-me uma paixão que eu nunca sentira pela fotografia, tornando a escolha entre vídeo e fotografia neste momento, algo em que não quero pensar pelo menos ate isso ser inevitável. E por último, agradeço ao Vítor. Trabalhar com o Vítor foi mais que gratificante.
Nunca conheci um profissional que se preocupasse tanto com algo que para ele seria apenas mais um estudo fotográfico que fariam sobre a sua criação, pois já fizeram pelo menos sete projetos fotográficos com ele, e mesmo assim ele demonstrou uma preocupação e uma vontade de ajudar enormes.
Finalmente, e depois de horas a escrever sobre devaneios que me levaram a insistir neste tema, e sentindo-me agora completamente liberto de qualquer preocupação ou insatisfação, despeço-me.
"A arte não pode ser política, nem sujeição social, nem glosa duma ideia que faz época; nem mesmo pode estar de qualquer forma aliada ao conceito «progresso». É algo mais. É o próprio alento humano para lá da morte de todas as quimeras, da fadiga de todas as perguntas sem solução."
Agustina Bessa-Luís
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REFERÊNCIAS
MONICA LEK - Istanbul's transgender Queens
NAN GOLDIN
ALVARO LAIZ - Transmongolian
SHAYAN ASADI - Acting Out a Glamorous Self
(autor desconhecido) - Drag me home, Mary
SVEN ZELLNER - Drag Queens
MICHAEL LANG - The Drag Illusion
ELLEN WALLENSTEIN - Pocketbook of Drag Queens
NATASHA SEMMYNOVA (2014)
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NATASHA SEMMYNOVA (2014)

O transformismo, é uma arte teatral, em que um indivíduo se veste com roupas e acessórios do sexo oposto com o propósito de criar uma ilusão e re Read More

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